02 / 07 / 22

No Reino de Dona Feia

Reflexão

No Reino de Dona Feia

Foto: Dr. Bill

Por Jailton Alves de Oliveira

 

Fui convidado por dona Benévola a visitar o reino de dona Feia.

 De início fiquei um tanto estupefato pelo convite feito. Não sabia como Dona Benévola havia me conhecido. Foi quando na viagem, indo num carro muito chique, daqueles saídos de filme como velozes e furiosos, Jalau o motorista de Dona Benévola me falou que sua patroa precisava falar comigo para me pedir um favor.

 Nos meus pensamentos eu ficava a me perguntar por que eu e como Dona Benévola, pessoa tão importante, de um reino tão distante e famoso poderia precisar de mim. Eu, tão desconhecido e sem sangue azul, um plebeu daqueles bem eremita saído do meio das matas.

 Jalau, um senhor sério, compenetrado, discreto, alto, cara lisa e de meia idade e muito serviçal. Me pediu licença para conversar comigo enquanto íamos para o reino de Dona Benévola.

 Eu conheço o Senhor, disse ele todo formal e discreto. Você me conhece de onde? Perguntei-lhe meio que sem jeito, afinal eu não sabia em que terreno estava pisando. O Senhor é um artista muito importante por lá. Eu, mas eu nunca fui por lá e nem sou artista. Só pode ser alguém muito parecido comigo. Não! É o senhor mesmo. Dona Benévola ama as suas peças teatrais, ela gosta do jeito que o Senhor se apresenta. Uma vez sem querer, é claro, ouvi a patroa dando gargalhadas falando do Senhor.

Mas estou te dizendo que não a conheço e que não sou essa pessoa de quem você está falando. Dona Benévola não se engana e nunca erra, tenho a convicção de que o Senhor está falando isso para mim para evitar um diálogo até chegarmos lá.

Não, nada disso. Jalau me disse: Senhor se segura um pouco aí que vamos aumentar um pouco o acelerador pois estou atrasado e a patroa não admite atraso. Jalau apertou um botão no painel de comando do carro e como um raio passamos a viajar tão rápido por espaços nunca vistos e imaginados por mim.

Passei no reino do Rei Marvel e vi King kong brigando para nos proteger quando dinossauros avançaram em nosso carro para nos atacar. A sensação de medo me invadiu e me senti como se tivesse dentro de um reino de fantasia. Mas aquilo estava mesmo acontecendo. Meu Deus! Nosso carro como que num sopro fora arremessado para uma montanha de pedra e gritando de pavor, sabia que o meu dia havia chegado e que íamos morrer. De repente fomos acolhidos pelas mãos de King Kong e generosamente ele nos acolheu, nos protegeu e antes de colocar nosso carro de volta na estrada nos olhou carinhosamente.

Meus olhos cruzaram o seu olhar e senti uma paz daquelas que sempre sinto dentro de mim quando estou no meio das matas longe de tudo e de todos.

Nunca mais vou esquecer daquele olhar tão terno, tão carinhoso e tão amoroso. Aprendi que o que parece ser nem sempre é tão grotesco e perigoso. De volta na estrada, Jalau apertou um novo botão e como que sugado por uma chama quente com pingos de água fomos jogados em outro espaço. Dessa vez não tive medo e uma doce sensação me invadiu e tomou o meu coração. Estávamos no reino de E.T., deslizando vagarosamente, silenciosamente num reino tão distante que parecia outro planeta. Eu não sabia descrever aquela sensação, só sei que o meu coração se abarrotou de uma alegria tão imensa que não cabia dentro de mim.

Enquanto deslizávamos pelo ar, silenciosamente e vagarosamente, eu ia vendo as montanhas coloridas, os pássaros voando num bailado sincrônico nunca visto pelos meus olhos, fontes de águas límpidas que mais pareciam espelhos refletindo a alma pura do mundo que eu nunca havia visto no meu mundo. Ví pessoas, não tinham a aparência de mim, mas sei que eram pessoas de um mundo que nunca havia visto ou pensado existir. Pessoas doces, carinhosas, amorosas umas com as outras e numa só voz diziam: E.T. está voltando pra casa, E.T. está voltando pra casa. Dos meus olhos saíam lágrimas de emoção e de um sentimento nunca sentido antes assim.

É tão bom voltar para casa, é tão bom ter alguém nos esperando em casa, é tão bom ser amado e esperado. No meu mundo existem milhões de pessoas que não têm para onde voltar e nem têm ninguém os esperando. É uma solidão que chega a doer.

O carro dá uma leve parada, e não sei se estou sonhando ou se estou dormindo ou se estou acordado. O que eu sei é que tudo aquilo está acontecendo.

Jalau me diz: chegamos senhor.

Desço do carro e vislumbro aquele lugar. É um reino diferente, avisto montanhas imensas cercadas por um verde indescritível. As árvores exalam um perfume que inebria a alma e o coração da gente. Os pássaros conversam entre eles e consigo entender tudo o que eles conversam. Ao lado de um grande portal, avisto um rio e ouço os peixes conversando e crianças peixes brincando de cirandas entre as pedras. Vejo pessoas andando como se voassem sem pisar no chão. É um bailado entre o vento que atravessa as plantas, as árvores e as flores, os pingos de raios de sol que atravessam os espaços que me rodeiam e fico deslumbrado e inebriado de emoção.

Um portão imenso se abre e avisto um enorme corredor de piso branco e paredes límpidas e adornadas por quadros de pessoas importantes da história de nossa gente. Olho para o teto e vejo a pintura da capela cistina.  Vejo obras de grandes nomes da pintura de todos os tempos de toda a história e de toda humanidade.

Após o longo corredor, já não sinto mais os meus pés pisando o chão. Vejo que também estou flutuando. É uma sensação que não consigo descrever. Chego num grande salão de um teto tão alto que chego avistar as nuvens.

Dos meus pensamentos saem poesias que aparecem grudadas nas paredes e se movimentam à medida que vou passando, e vejo as histórias acontecendo e se refazendo diante de mim. Vejo a dança de cores, luzes e som numa simbiose entre a poesia o pensamento e a palavra que não é dita, mas sentida e vivenciada.

Atravessado um imenso salão e chego num outro espaço e me paraliso não de medo, mas de espanto. Me vejo sendo recebido por mim. É uma cópia de mim. Esse outro que sou eu e que sabe tudo de mim e converso com ele sobre nós em mim. Não entendo o que está acontecendo. Sem palavras e sem falar ele me diz que há muito tempo eu estava sendo esperado por dona Benévola a Rainha desse lugar. E que ela estava me esperando nos seus aposentos. Esse outro me levou até dona Benévola. Agora eu sabia o porquê de Jalau ter me dito que dona Benévola adorava os meus espetáculos. O artista de quem ele, Jalau, falava, era esse outro eu, que eu não sabia que existia.

Perguntei a mim que era esse outro, como eu deveria me comportar diante da Rainha. Perguntei se eu precisava flexionar os joelhos para poder falar com ela. Fique tranquilo, por aqui não existem essas coisas fúteis do mundo de lá. E comecei a pensar em que mundo eu estava. O meu outro me disse: Você está no mesmo mundo, é que aqui, o véu que cobre os olhos de todos estão descerrados e por aqui todos são iguais. Humanos que sentem, que choram de alegria e de emoção e não de dor. Aqui vivemos o coletivo naturalmente.

Chegamos. A Rainha Benévola abriu os braços quando me avistou e fiquei extasiado de alegria e de emoção. Como uma Rainha me recebia com tanta alegria, eu, um plebeu, saído do meio das matas.

Ela me abraçou, sorriu carinhosamente e me disse sem verbalizar uma palavra, todas as coisas que eu precisava saber. Nossos pensamentos estão conversando. Que estranho! Eu pensava antes de vir aqui que os pensamentos não conversavam. Eu só ouvia isso em filmes de ficção. Agora sei que tudo isso é verdade e que é possível. Basta aprender a olhar, a ver e a enxergar o mundo com os olhos do coração. Agora entendo por que Jesus disse que “só entrará no Reino dos céus quem tiver um coração de criança”. Infelizmente quando crescemos perdemos a inocência.

Agora entendo por que Firmino Rocha, poeta baiano da cidade de Itabuna, a mesma de Jorge Amado, disse que “deram um fuzil ao menino”. Mas isso é outra história. Vamos voltar para cá.

A Rainha Benévola me levou a passear por todo o seu reino e me disse coisas que só o coração pode compreender. Me emocionei muito durante o percurso e ela me perguntou por que eu chorava. Lhe respondi que não queria mais voltar para o meu mundo porque aqui era maravilhoso e era esse mundo que eu sempre procurava. Ela riu e disse para mim que podemos viver e ser assim em qualquer mundo. E que para isso bastava deixar o coração falar. Sem se preocupar com o que o outro pudesse pensar sobre você. Ser feliz é uma questão de escolha e que só se vê bem “com os olhos do coração” como dizia Saint Exúpery. Infelizmente no mundo que você habita, algumas pessoas só valorizam as coisas quando perdem. Aí é tarde demais.

Mas deixa pra lá, não somos os donos do mundo. Viver e ser feliz é sempre uma questão de escolha.

Bem vamos ao que interessa: Eu te convidei aqui para pedir a sua ajuda. Lá no Reino de Dona Feia, minha irmã que tanto amo, tem tidos alguns problemas e convivendo aqui com você no reino de cá penso que você poderia me ajudar, claro se puder e tiver disponibilidade. Mas eu, logo eu? Sim, você mesmo. Olha sei de você há muito tempo. Gosto de como você ama as suas pessoas. O que gosto em você é que você sempre deixa o coração falar mais alto, e isso é muito bom apesar das dores, e são tantas as dores…

 É de pessoas assim que precisamos para melhor contribuir com a humanidade em nós. O que gosto em você é que está sempre acreditando no ser humano e isso é o que vale. Se formos deixar de acreditar na humanidade o sentido da vida para de existir e dessa forma será o fim de todos os nós.

Me conte Dona Benévola. Qual o problema?

Acontece que no Reino de minha irmã tem ocorrido uma série de eventos que podem colocar toda a população em risco.

Como assim? Ela está começando a parecer a ditadores dos Reinos do mundo de lá.

No mundo de lá, de onde você veio, os Reis, Líderes, Presidentes e coisa do tipo têm medo do diferente e dos desiguais e tentam padronizar todos para manipular com mais facilidade. Temo que minha irmã esteja se contaminando com essas coisas de lá.

Minha irmã é muito feia, feíssima, chega a ser medonha e não admite ninguém mais feio do que ela. E lá tem acontecido um fenômeno muito estranho.

No nosso Reino de cá acreditamos no diferente, na diversidade, no coletivo e sobretudo no amor. Sem amor tudo deixa de existir.

No Reino de Dona Feia a maioria das pessoas está se padronizando e isso é muito perigoso porque é dessa forma que os ditadores fazem e se refazem nas derrotas da humanidade, imprimindo a divisão, dizendo que é em nome da Pátria, da Família e de Deus.

E isso me preocupa muito. Estávamos a assistir aqui àquele filme da pequena sereia. Você conhece? Sim, conheço. Pois bem. Lá no reino de minha irmã Dona feia vi algo que me espantou. Vi por exemplo todas as mulheres, todas, todas elas,  crianças, jovens e adultas com aplique de kanecalon, aquele tipo de cabelo sintético bem conhecido no mundo das tranças. Pois bem, vi todas as pessoas do gênero feminino usando esse tipo de cabelo postiço que chegava a bater até a batata da perna. Fiquei a pensar: Todas as mulheres agora se transformaram em pequenas e grandes sereias? Como no filme?

Vi também todos os meninos, jovens, e adultos da mesma forma. Todos iguais. O mesmo cabelo, o mesmo modelo de roupa, de sandália, de bolsa, de calça, de vestimenta, enfim a indumentária exatamente igual para todos. E fiquei a me perguntar se o bonito é o diferente, como minha irmã, Dona Feia, está calada sem tomar uma providência em seu reino, sem discutir com todos que é na diversidade que a beleza da feiura existe e não na padronização que está ocorrendo em seu reino. “E eu não estou dizendo isso como uma crítica, mas como uma constatação” como disse um amigo meu, Dr. Bill, que sempre quando estou com dores ele vem me atender e me cura com as suas mãos.

E isso me preocupou porque no seu mundo de lá, os ditadores tomaram a posse das almas dos seus cidadãos exatamente dessa forma, classificando e encaixotando as pessoas em salas, gavetas, caixas, grupos. E assim a violência generalizou-se.

Minha irmã A Rainha Dona Feia, se não tomar uma providência em desenvolver no seu reino a necessidade de mostrar a beleza da feiura na diversidade, o seu reino vai terminar copiando o reino de lá do seu mundo.

Por isso eu gostaria que você aceitasse o convite de passar uma temporada no Reino dela para, com o seu jeito de ser e de viver, sem falar, que viver o diferente e ser diferente é o mais bonito da vida.

Percebo que por lá, a minha irmã tem estado entristecida pois ela não permite ninguém mais feia do que ela. Essa história do povo de lá disputar quem fica mais feio ou mais feia do que ela é perigoso porque pode se começar uma guerra civil. Sei que minha irmã tem um comportamento que às vezes sinto medo. Ela pode criar uma guerra com a desculpa de que seus súditos estão querendo ser mais feios do que ela. Mas a verdade está por trás das cortinas e dos olhares. O véu que cobre os olhos do povo de lá está sendo tecido perigosamente e vagarosamente com a desculpa de que ser igual é uma forma de luta e de resistência. E isso é um ledo engano.

Me preocupou muito quando fui visitá-la que seu povo não mais sorria, não mais dançava, não mais cantava. Vi nas suas praças uma multidão vestida padronizada que aglomeradas amedrontavam os diferentes deles. E isso é o início de uma guerra que se não evitada pode disseminar para vários continentes.7

Por isso preciso da sua forma de ser e de ver o mundo vivendo no Reino de minha irmã, até para eu saber se as minhas preocupações são realmente reais.

Leve sua alegria, sua arte, seu jeito de ser para lá e viva por lá por um tempo. Como eu te disse:

Não precisa falar nada. Basta ser o que você é e quem você é.

Essas são as minhas preocupações. Tenho medo de que no mundo de cá, as coisas de lá do seu mundo afete nosso planeta. Pois somos um só planeta, uma só vida, dividida em várias partes que habitam no nós.

Mas, Rainha dona Benévola, e se eu não conseguir. Não se preocupe. Terá valido a tentativa. Não podemos interferir no curso natural da existência, porém, se quisermos podemos contribuir com a construção do Universo, distribuindo e compartilhando amor. Lembra daquele olhar nos olhos de King Kong quando você cruzou os seus olhos nos dele? Lembra quando E.T. voltou para casa e todos, todos ficaram felizes com o seu retorno? Lembra que todos eram diferentes e de uma beleza estonteante, de uma feiura belíssima que exalava amor. Pois é. Só dessa forma que podemos viver para que nossa espécie continue a existir. Não existe outra saída.

Confiamos em você. Confiamos na sua forma de amar. Lembre-se de que você é daqui e de lá do seu mundo. E que a sua essência sempre será a do amor. Sei que você nunca vai desistir. E quando você estiver entristecendo e pensando que foi vencido, feche seus olhos, seja o eremita que você sempre foi, respire a alma da Mãe Natureza e se lembre de que você é também daqui e sempre estaremos juntos, pois somos tecidos dos meus fios que une todo o Universo. Vá e muito obrigado. Estamos sempre em nós.

João Costa

João Costa é Jornalista, Assessor de Imprensa, é Membro da API (Associação Paulista de Imprensa), é "Prêmio Odarcio Ducci de Jornalismo, é "Prêmio de Comunicação pela ABIME – Associação Brasileira de Imprensa de Mídia Eletrônica, Digital e Influenciadores, é Prêmio Iberoamericano de Jornalismo, é Referência em Comunicação pela Agência Nacional de Cultura, Empreendedorismo e Comunicação – ANCEC, tem reconhecimento por Direitos Humanos pelo Instituto Dana Salomão e Menção honrosa do Lions Clube Internacional- Rio do janeiro. Teve participação ativa em eventos da Embaixada do Gabão no Brasil em Brasília, tendo inclusive, sido intérprete de discurso a convite do Embaixador do Gabão no Brasil, em jantar beneficente, com a presença do Vice-Presidente da República Federativa do Brasil. O mesmo possui participação em workshops, webinars, congressos e conferências.

2 Comentários em “No Reino de Dona Feia

Alderacy Pereira da Silva Junior
3 de julho de 2022 em 13:10

Maravilhosa narrativa e profunda reflexão. Li e o pensamento me levou até Caetano Veloso e Ana Maria Machado. Caetano nos sentenciou poeticamente “é que Narciso acha feio o que não é espelho” e Ana Maria diz algo sobre a correnteza do pensamento. Há outros intelectuais para nos alargar a visão e a compreensão do valor da liberdade, como o intelectual Ruy do Carmo Póvoas. Creio que precisamos ler mais e nos permitirmos viver plenamente as nossas liberdade, individualidades e pluralidades culturais.

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João Costa
4 de julho de 2022 em 18:59

Sem comentário a aduzir as suas palavras…. simplesmente falou tudo!!!

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