10 / 08 / 11

We Want Miles

Imagens: divulgação

Finalmente o Rio de Janeiro recebe a exposição “Queremos Miles” (We Want Miles), título extraído do disco ao vivo “We Want Miles”, de Miles Davis. Essa exposição, com curadoria de Vincent Bassères, que foi concebida em 2009 para a Cité de la Musique de Paris, chegou ao Rio, e está no primeiro andar, com direito a várias salas, do CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil). Eu não pude ir no primeiro dia, por estar ocupado gravando em meu estúdio, mas no dia 2, terça-feira passada, entrei num imenso corredor escuro, muito longo, e com pequenas luzes vermelhas. Logo em minha chegada ao Centro Cultural Banco do Brasil, já dava para sentir aquela atmosfera de um dos maiores trompetistas de Jazz de todos os tempos. Para mim, amigos leitores, o maior, simplesmente o maior de todos.

We Want Miles

We Want Miles

Miles Dewey Davis III nasceu em 26 de maio de 1926, em Alton, no estado de Ilionois, e era filho de um dentista muito bem sucedido. Em 1927, sua família se mudou para East St. Louis. Eles também ganharam uma importante fazenda ao norte do Arkansas, onde Miles aprendeu a andar a cavalo.

A mãe de Davis, Cleota Mae (Henry) Davis, queria que seu filho aprendesse a tocar piano – ela era uma hábil pianista de Blues -, mas manteve isso escondido de seu filho. Os estudos musicais de Miles começaram aos 13 anos, quando seu pai lhe deu um trompete novo e providenciou algumas aulas com um trompetista local, Elwood Buchanan. Miles revelou que a escolha de seu pai por um trompete foi feita propositalmente para irritar sua mulher, que não gostava do som do instrumento. Contrário à moda naquela época, Buchanan ressaltou a importância de tocar o instrumento em vibrato, e assim Davis levaria seu timbre limpo por toda sua carreira.

Buchanan dava palmadas com uma régua na mão de Miles toda vez que ele usava heavy vibrato. Convidado por Buchanan para ver seu aluno tocar, o trompetista Clark Terry (que viria a ser uma das influências de Davis) se lembraria, anos mais tarde, de seus heterodoxos métodos de aprendizado: “Buch tinha uma régua enorme, e toda vez que Miles tremia uma nota, ele o acertava com ela nas juntas dos dedos e dizia: ‘Pare de tremer essa nota. Você já vai tremer bastante quando ficar velho’”. Davis certa vez comentou a importância dessa sua assinatura musical, dizendo: “Eu prefiro um som agradável, sem atitude, como uma voz agradável sem muito tremolo e sem muitas linhas de baixo. No meio tempo. Se eu não consigo esse som, eu não consigo tocar nada”.

Por essa razão, Miles era um músico diferenciado, ainda mais um trompetista negro, que, naquela época, sofria muita discriminação pelo racismo exacerbado nos EUA. Mas seu pai tinha um excelente padrão de vida, e isso fez muita diferença em sua formação. Mas essa exposição, muito bem montada, afinal, mostra uma carreira muito bem construída, e a riqueza de detalhes é que impressiona, com dezenas e dezenas de capas de discos que Miles gravou ao longo de sua carreira. Enquanto caminhava pelos corredores da exposição, a cada esquina eu via imensas telas com vídeos incríveis de Miles tocando seu trompete. Para quem acompanha a carreira de Miles como eu…

Perdi a conta de quantos discos tenho dele. Tive a sorte de tocar com Gilberto Gil no festival de Jazz-Brest, em um castelo medieval com uma vista maravilhosa, cheio de gente bonita e educada. O que me chamou a atenção também foi o fato de um festival de Jazz reunir um número muito grande de jovens interessados, com aquele clima de cultura no ar, onde se apresentaram, além de Gil, o vibrafonista Lionel Hampton, o mestre do Blues Albert King, e Miles Davis, é claro. Foi um festival inesquecível.

Imaginem para mim, ter entrado em uma das salas da exposição e encontrar um quadro com o trompete de Miles, e ao lado, o sax tenor Selmer do extraordinário John Coltrane, parceiro de discos históricos de Miles nos anos 1950. Simplesmente emocionante. E continuando a caminhada, vocês encontrarão trompetes de várias cores, mais uma de suas marcas. Miles era tão sofisticado e tão a frente de seu tempo, que mandava a fábrica “laquear” os seus trompetes: vermelhos, verdes, azuis; são trompetes de muitas cores, e são belíssimos. Vocês também encontrarão instrumentos de percussão do brasileiro Airto Moreira, que tocou com Miles no fabuloso disco que abriria uma nova frente para os caminhos do Jazz, o “Bitches Brew”, lançado em 1970, e que acabou batizando o chamado Jazz Rock. Outro momento importante são as fotos de gravações, como as clássicas feitas por Don Hustein durante as sessões de “Kind of Blue” (1959), o disco mais vendido na história do Jazz, uma verdadeira obra-prima. Eu o tenho aqui em casa, nas versões LP/CD e na caixa comemorativa dos 50 anos, com CD/DVD com imagens raríssimas desse disco espetacular.

"Kind of Blue" (1959)

"Kind of Blue" (1959)

A divisão da exposição é cronológica, em oito módulos. O primeiro (1926-1948) vai da infância de classe média alta, em St. Louis, até sua chegada a Nova York, quando ele disse aos pais que iria para Nova York para estudar música na Julliard School, e chegando lá, mudou de ideia e resolveu se aproximar dos líderes do Bebop, como Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Miles, sem perceber, aos poucos foi criando a sua escola, com seu som refinado, sem o vibrato. Ele criou o Cool Jazz, tema do segundo bloco (1949-1954).

Entre 1955 e 1962, livra-se do terrível vício à heroína, quando se refugia na casa de seus pais e tem crises de abstinência terríveis, até voltar a fazer shows com seu sexteto e a gravar alguns de seus principais discos; e ainda tem marcante passagem por Paris, onde criou a trilha sonora do filme “Ascensor para o Cadafalso”, de Luis Malle. Com a trilha criada e o som de seu trompete sofisticado, cool, que encantava muito o público feminino, Miles começa um romance com a atriz francesa Jeanne Moreau (vejam a foto). Miles sabia como encantar as mulheres, sempre gostou das boas coisas da vida. Sempre esteve cercado de mulheres lindas, atrizes, cantoras e primeiras-damas por onde passava, e carros incríveis. Uma vez, foi parado pela polícia de Nova York, porque estava dirigindo sua Ferrari vermelha. Em sua garagem, também tinha a famosa Lamborghini Miura, o mesmo carro que, em 1972, levou Miles a ficar um tempo sem conseguir tocar, por conta do terrível acidente em que ele deu perda total no veículo e se machucou muito.

Miles Davis e Jeanne Moreau

Miles Davis e Jeanne Moreau

De 1963-1967, cerca-se de jovens músicos e inventa mais um caminho, o do Free-Jazz. Entre 1968 e 1971, aproxima-se dos instrumentos eletrônicos e do Rock, muito influenciado pelo guitarrista Jimi Hendrix, com quem Miles tinha planos de fazer um disco juntos, sonho esse que nunca se realizou, por conta da morte prematura de Jimi Hendrix. Entre 1972-1975, mergulha em signos da cultura negra, como o boxe e o Funk (o verdadeiro Funk, de batidas com o som das ruas, dos guetos, e de um balanço black sem igual) – por favor, amigos leitores, não confundam com o que chamam de “Funk Favela”, aquele lixo tocado nos bailes de comunidades carentes, algo parecido com música.

Entre1976 e 1980, Miles simplesmente passa o tempo trancado em seu apartamento em Nova York, recluso, sem sair de casa, novamente mergulhado em drogas pesadíssimas. Sua música fica em silêncio todo esse tempo, nem tocar seu trompete ele conseguia, pelo vício em cocaína, e muitos achavam que seria o fim de uma carreira brilhante, até ele escutar as palavras de apoio e ter visitas constantes ao seu apartamento do extraordinário baixista e compositor Marcus Miller, que o levou a sair de casa, caminhar pelo Central Park pelas manhãs, e começou a fazê-lo tocar seu trompete mágico outra vez. Aos poucos, Miles – que os amigos diziam, nessa época, quase não levantar da cama, com a cabeceira sempre repleta de cocaína – volta a fazer o que ele sabia melhor, que era tocar seu trompete. Miller marca novo encontro com Miles e apresenta-lhe um novo repertório, músicas novas. Miles sorri, e com aquela voz rouca, e falando baixo, vira-se para Miller e diz: “Cool, bitch!”. Marcus Miller, entusiasmado, marca sessões no estúdio, e Miles finalmente dá a volta por cima, gravando o disco “Tutu” (1986), uma homenagem ao bispo sul-africano Desmond Tutu, composição de Marcus Miller, e mais uma vez Miles dita nova direção para o Jazz com esse disco espetacular, que alcançou um número muito alto em vendas de CD.

Com sua rica história no mundo da música e influenciado por músicos de todo o planeta, Miles Davis tornou-se um mito muito maior que sua música. Miles era assim: tinha uma enorme percepção das coisas, ainda pintava quadros, tinha recebido de seus pais uma ótima educação, escreveu uma enorme história na música desde o começo do Bebop, tocando com gênios do Jazz, como os saxofonistas Charlie Parker e John Coltrane… Sempre muito elegante, vestindo ternos muito bem cortados. Veio o Cool Jazz, o Free Jazz, o Jazz Rock, e aí Miles abriu sua cabeça também pela maneira de vestir-se, com roupas extravagantes, coloridíssimas, criadas muitas vezes em desenhos dele próprio. Isso sempre me encantou, para falar a verdade. Eu penso muito nisso quando vou me apresentar, gosto dessa coisa extravagante que Miles tinha, que muda o foco artístico. Sempre achei, desde menino, quando comecei a tocar, que um músico tem que ter magia, algo muito especial para mostrar para seu público, e não fazer de seu ofício algo burocrático. A plateia não quer ver um músico no palco como se ele estivesse indo à paróquia ou a um batizado. Ela quer vê-lo brilhar, quer atitude, e Miles tinha isso de sobra. Mas essa é uma característica que nasce com a pessoa: ou se tem, ou não se tem. Não adianta forçar.

Na tarde de terça-feira, depois de almoçar no restaurante do CCBB, pude ver essa maravilha de exposição, e recomendo aos amigos que gostam do Jazz. Impressionou-me muito ver tantos jovens pela exposição, um sinal positivo para uma música e uma história tão rica como a de Miles Davis. Eu vou voltar ao CCBB para vê-la novamente, agora pela segunda vez, com mais calma, sem o impacto que me causaram todas aquelas fotos, vídeos, instrumentos, salas escuras com fotos e o som dos discos de Miles tocando, sem interferência, sem passar som para outra sala. E você, amigo leitor? E vocês que amam o Jazz, o que farão? Bem, eu já sei: talvez nos vejamos no CCBB do Rio de Janeiro, em “Nós Queremos Miles”, “We Want Miles”.

Beijos, abraços, e até a próxima!

Beto Saroldi

Beto Saroldi - Rio de Janeiro/RJ

Saxofonista, compositor e produtor musical, começou sua carreira em 1975 com Eduardo Dusek e desde cedo foi muito requisitado nos estúdios, gravando com Fafá de Belém, Zizi Possi, Capital Inicial, Barão Vermelho, Gilberto Gil, Toquinho, Lulu Santos e muitos outros astros da MPB. Fez parceria com Erasmo e Roberto Carlos, tocou com Wagner Tiso & Lô Borges e ainda pertenceu a "UmBandaUm" de Gilberto Gil, fazendo turnês pelo Brasil, EUA, Europa, América Central e Oriente Médio.

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