24 / 10 / 22

OS NÓS DA ENERGIA

 

“O setor elétrico brasileiro foi feito por nós. Cabe a nós desatar esses nós”.

(Geoberto Espírito Santo)

O setor elétrico brasileiro passou por modelos estatal, neoliberal e atravessa um híbrido na direção da transição energética. Um nó não desatado do modelo estatal é o empréstimo compulsório (1964), criado quando o Estado se tornou incapaz de financiar a expansão do sistema, só devolvido para poucos após luta judiciária. A entrada da inciativa privada na disputa pelo mercado no modelo neoliberal não chegou a ser concluída, interrompida por uma grave crise de racionamento (2001) que motivou uma reestatização. O nó da Eletrobras só agora foi desatado numa corporation. A incerteza da energia firme foi transformada em energia assegurada e depois em garantia física (GF), um nó ainda atado nas hidráulicas que receberam um certificado econômico para uma produção garantida. Desde 1998 a GF das hidrelétricas deveria ter sido revista e não foi com receio da inflação, porque menos GF resultaria num valor maior da energia para remunerar o investimento na concessão.

Sem condições políticas de reestatizar o sistema elétrico, passamos a conviver com um modelo híbrido e até hoje o nó da MP 579 continua furando o bolso do consumidor. A pressão ambiental pela transição energética tende a transformar o híbrido num outro, com os conceitos 5 Ds: Descarbonização, Descentralização, Digitalização, Desenho de Mercado e Democratização. Não importa qual o nome que será dado ao novo modelo do setor elétrico, desde que milhões de consumidores não venham a pagar pela economia dos muitas vezes menos.

OS NÓS DA ENERGIA

O crescimento da geração intermitente e não despachável de eólicas e solares para a descarbonização é um nó, pois não promoverá a segurança energética sem um volumoso armazenamento economicamente viável. O processo de descentralização, no qual está inserida a geração distribuída (GD), nos leva a uma popularização de tecnologias e requer que mecanismos regulatórios e tarifários ampliem a flexibilidade e o controle da demanda elétrica. Projeções de telhados solares, mercado livre, carros elétricos, smart grids, mobilidade urbana, cidades inteligentes, certamente influíram no cancelamento de leilões por falta de manifestação de compra das distribuidoras, que já estão 8% sobrecontratadas até 2025. Para desatar esse nó precisa um novo modelo de gestão e de tarifas para transformar as distribuidoras em supridores de última instância, serviço distinto da comercialização.

Essa flexibilidade que vai modificar padrões de geração e de consumo virá de um sinal de preços que além de prover um serviço ao sistema elétrico deve também contribuir para a manutenção da estabilidade da rede. Será exigido um alto nível de coordenação entre o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) com o Operador do Sistema de Distribuição (OSD) que permita uma integração com o mercado livre, GD e serviços ancilares distribuídos. A ausência de infraestrutura de informação e comunicação e o arcabouço regulatório inadequado para o momento são outros nós a serem desatados.

Num mercado livre para todos teremos a “uberização” da energia elétrica, os comercializadores varejistas, os “consultores de energia” e os agregadores de demanda, pois a maioria dos consumidores não terá condições de entender as nuances da arquitetura dos serviços e na formação dos preços a serem oferecidos. Nessa fase, não deverá haver excedentes de GD emprestados à rede da distribuidora e sim um preço de compra, outro de venda e mecanismos iguais para os consumidores de diferentes concessionários poderem comercializar sobras e déficits.

A precificação da energia elétrica é um grande nó a ser desatado. Deve haver alguma distorção no cálculo do PLD (Preço de Liquidação de Diferenças) quando estudos demonstraram que a hidrologia é responsável por 51% do preço da energia, enquanto o armazenamento participa com 13% apenas. Difícil entender quando em plena crise hídrica de 2021, despachava-se térmicas com custo maiores que R$ 2.000/MWh e o modelo apontava preços de R$ 200/MWh.  A energia mais barata não é a da fonte que teve sucesso em leilão. Nele, vende-se 30% da GF com preço mais baixo e obtém-se o acesso ao sistema interligado, deixando os 70% restantes para comercializar no mercado livre, aproveitando-se dos subsídios que são custeados pelo consumidor cativo. Se uma fonte de energia não tem condição de gerar durante as 24 horas/dia, no bolso do consumidor vai aparecer o custo lastro de uma fonte complementar e de outra linha de transmissão. A energia mais barata é o preço final que chega no bolso do consumidor, quando na fatura são adicionados encargos e tributos, nos quais as políticas públicas deveriam ser custeadas pelo Poder Concedente.

Outro nó a ser desatado é o do ICMS, que o STF já deu início, mas que os estados não estão cumprindo integralmente a Lei Complementar 194/2022. É necessário unificar critérios tributários, tanto para quem está no mercado regulado, como no mercado livre ou na GD, pois esse imposto constitucional, que transformou a energia numa mercadoria, não deve privilegiar nenhum tipo de consumidor.

Talvez o nó mais difícil é o da governança, pois o Congresso Nacional, além de legislador, tem exercido o papel de planejador e regulador de mercado para atender questões específicas de segmentos do setor. As térmicas compulsórias na lei que autorizou a privatização da Eletrobras e o cronograma para a “taxação do sol” deixar de ser paga em 2030, são exemplos. Os “jabutis” começam a andar na MP 1.118, quando os deputados querem um prazo de mais dois anos para fontes incentivadas no marco das micro e minigeração e um sinal locacional na transmissão no Norte/Nordeste beneficiando as empresas eólicas, quando a ANEEL tem regulação que beneficia os consumidores. Parece paradoxal que o Parlamento que cria os subsídios, seja o mesmo que acha a conta de luz muito alta ao ponto de pensar em um Decreto Legislativo para baixar tarifas. Todos apoiam o PL 414, a modernidade, a abertura do mercado, as fontes renováveis, mas para ser justa não pode ser aprovada sem que muitos desses nós sejam desatados. Que a Frente Nacional dos Consumidores de Energia sempre tenha êxito. (Valor Econômico, dia 21/10/2022)

OS NÓS DA ENERGIA
por Geoberto Espírito Santo

Geoberto Espírito Santo

SinergiaGeoberto Espírito Santo é Engenheiro Civil, formado em 1971 pela Universidade Federal de Alagoas. Atualmente é Consultor do SINDENERGIA – Sindicato das Indústrias de Energia do Estado de Alagoas e Personal Energy da GES Consultoria, Engenharia e Serviços – GES Consult ATIVIDADES QUE EXERCEU: - Engenheiro da Companhia Energética de Alagoas (CEAL), por 28 anos - Diretor de Operação da Companhia de Eletricidade de Alagoas - CEAL - Secretário de Administração da Prefeitura Municipal de Maceió - Assessor de Coordenação e Planejamento da Empresa de Recursos Naturais do Estado de Alagoas - EDRN - Chefe de Gabinete da Diretoria de Desenvolvimento Energético da CEAL - Assessor da Subcomissão de Minas e Energia do Senado Federal - Diretor de Distribuição e Comercialização da Companhia Energética de Alagoas - CEAL - Consultor em eficiência energética do PNUD / ELETROBRÁS - Secretário Executivo do Núcleo de Eficiência Energética na Indústria (NEEI / FIEA) - Secretário Executivo do Conselho Estadual de Política Energética de Alagoas - CEPE - Secretário de Estado Adjunto de Energia e Recursos Minerais de Alagoas - Vice-Presidente de Planejamento Energético do Fórum Nacional dos Secretários de Estado para Assuntos de Energia - FNSE - Representante da Região Nordeste no Conselho Consultivo da Empresa de Pesquisa Energética – EPE - Diretor Presidente da Gás de Alagoas S.A. – ALGÁS - Vice-Presidente do Conselho Estadual de Política Energética de Alagoas – CEPE - Presidente do Conselho Fiscal da ABEGÁS – Associação Brasileira das Empresas das Empresas Distribuidoras de Gás Natural – ABEGÁS - Professor nas disciplinas de Eletricidade e Eletrotécnica, no Centro de Tecnologia da Universidade Federal de Alagoas – UFAL - Membro do Conselho Estadual de Política Energética – CEPE LIVROS E TRABALHOS PUBLICADOS: - Protestos e Propostas (EDUFAL) - Energia: Um Mergulho na Crise (IGASA) - Política e Modelagem do Setor Elétrico (Imprensa Oficial GRACILIANO RAMOS) - Espírito Cidadão (EDUFAL) - Vários trabalhos sobre energia publicados nos anais de Seminários, Congressos Nacionais e Revista Internacional

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